12 de junho de 2010

"A Um Deus Desconhecido" ?

A todos:
(Se não lerem mais nenhum post deste blogue, leiam pelo menos este)

Quando o Felipe Massa, piloto de Fórmula 1, teve aquele infortúnio grave que quase o matava, eu evidentemente solidarizei-me com os familiares e com todos os adeptos e demais pessoas que o conheciam e lhe queriam bem, nos desejos de melhoras rápidas e completas, e de que ele pudesse regressar em breve à competição.

Foi um acidente lamentável, mas acontece. A técnica é apurada, mas pode haver sempre um descuido humano ou uma falha no material de que resultam às vezes coisas insignificantes, ou, como foi o caso, muito graves.

Mas a Fórmula 1, como desporto-rei das quatro rodas, tem sido o expoente máximo das inovações científicas e tecnológicas: se não fosse o capacete que muitas pessoas ajudaram a desenvolver ao longo dos anos, incluindo o ex-colega de equipa Michael Schumacher, o Felipe Massa hoje poderia não estar connosco.

Se muitos antes dele, ao longo das décadas, não tivessem infelizmente ficado pelo caminho - porque isto dos avanços, seja em que área for, tem quase sempre vítimas e mártires - hoje o Felipe Massa poderia estar justamente a ser ele próprio uma vítima e um mártir, para sempre lembrado na história como um dos que ajudou a tornar o desporto mais seguro.

Se não fossem todos os que conduziram carros sem as protecções que os de hoje têm e se eles não se tivessem espetado na curva seguinte e infelizmente provado que o carro precisava de mais segurança; se as curvas não tivessem sido desenhadas e alteradas ao longo dos anos para que se tornassem cada vez mais seguras, recorrendo à experiência, a cálculos matemáticos de velocidade e resistência dos materiais; se não se tivessem lembrado de colocar pneus nas barreiras para amortecer o choque (e se os pneus não tivessem sido inventados e aperfeiçoados!), de que o Felipe beneficiou; se não se tivesse inventado um meio de transporte rápido, que pode aterrar e descolar na vertical - helicóptero, que permite o socorro e a deslocação em tempo útil dos feridos até ao hospital; se os médicos de hoje não fossem o resultado do saber acumulado de estudiosos e médicos anteriores - que também cometeram erros (há sempre mártires, como dizia) - até se chegar ao estado da técnica que hoje há; se não houvesse nada disto, mesmo com toda a boa vontade do mundo, o Felipe Massa poderia muito bem não estar aqui para agradecer.

E foi justamente agradecer a primeira coisa que Felipe Massa fez quando voltou à ribalta. Agradecer a Deus.

Deus que não fez nada para impedir que uma mola saltasse da traseira do carro do seu compatriota Rubens Barichello e o atingisse a alta velocidade, aumentando exponencialmente o seu relativamente diminuto peso de 800 gramas. Só depois é que Massa agradeceu aos médicos. Os médicos que só o puderam salvar porque todos os outros factores que eu referi acima estavam presentes, porque o capacete ainda o protegeu, porque o carro é mais seguro do que há uns anos, porque as barreiras de protecção existiam e absorveram o impacto do carro, porque havia um helicóptero. Porque muitos trabalharam e outros ficaram pelo caminho. Tudo fruto de trabalho árduo de pessoas de carne e osso, ao longo das décadas, para que pudéssemos chegar ao ponto de desenvolvimento e conhecimento que temos hoje, e de que ele, Felipe Massa, pudesse, entre outros, beneficiar.

Deus que, se é omnipresente como dizem, presenciou o acidente e nada fez para que aquilo não acontecesse. Ou, numa hipótese que muitos não considerarão possível, ainda que seja concebível, Deus quis que acontecesse daquela forma.

Seja como for, ao não impedir, compactuou. É como estarmos numa peça de teatro em que somos todos marionetas ao dispor do senhor que puxa os cordelinhos. Podemos ter a liberdade de pensar, mas os nossos movimentos e o nosso destino ficam ao sabor alheio. Que significado tem uma pessoa agradecer a um Deus que não se sabe que papel teve no seu acidente, e cujo papel, por igual razão, também não se sabe ter tido na sua recuperação, excluindo o de, pelo menos, não ter conspirado contra?

Será um agradecimento submisso, de alguém que se submeteu a Deus e se declara à sua mercê, como diz o islamismo ? Alguém que não critica ou pede explicações quando acontece o infortúnio, mas que agradece quando acontecem coisas boas ?

É uma pessoa ser colocada no mundo com certas características e depois aprender, à custa de sofrimento, a melhorá-las e agradecer a Deus essa possibilidade - quando têm essa possibilidade e não morrem no processo, num qualquer acidente estúpido ?

Enquanto isso, outras pessoas são incomparavelmente mais sortudas, felizes e vivem uma vida muito mais preenchida e longa. É por isso que se acredita na reencarnação ? Porque, mais cedo ou mais tarde, também nos vai calhar na rifa cósmica nascer no sítio certo, à hora certa, nas condições e ambiente social e genético certos, como pessoas, outros animais, plantas ou árvores ?

Ninguém sabe a resposta. Muita gente acredita que sabe a resposta, mas ninguém consegue demonstrar que está certo. Ninguém sabe o que o futuro reserva. Ninguém sabe explicar o funcionamento "disto".

"Isto" é sem dúvida muito interessante, sem dúvida. Reconfortante, recompensador quando nos esforçamos e a coisa corre bem; que nos torna humildes quando não corre bem e temos mais chances e conseguimos com determinação, sabedoria e humildade, vencer. Do superlativo positivo ao superlativo negativo existe de tudo, em quantidades e em espaços variáveis.

Ninguém sabe porque é que existimos, e como é que existimos. Ninguém sabe o que é o contrário de "haver".

Pode ser que um dia lá cheguemos. Cada dia sabemos mais. De coisas que conseguimos, de facto, demonstrar.

Talvez um dia também consigamos demonstrar científicamente a teoria social do porquê muitas pessoas sentirem a necessidade de acreditar em Deus, mesmo aquelas pessoas que sabem que antes de Jesus Cristo, o seu Pai e o Espírito Santo, houve muitos outros Deuses, inclusive estátuas da Deusa egípcia Ísis com o menino Órus ao colo, que foram depois utilizadas, tal qual, como mostrando a Nossa Senhora com o Menino Jesus ao colo.

Mesmo para esses, que não ignoram a história e o conhecimento acumulado da humanidade, que sabem que todos os Deuses são relativos, porque conhecem os que são venerados agora e os que foram venerados antes, mesmo para alguns desses continua a fazer sentido a crença numa entidade superior, desligada das religiões - tão terrenas, efémeras e mutáveis, por muito impossível que lhes seja descrever o como e o porquê.

Ora aí está uma pergunta interessante: porque é algumas pessoas têm a necessidade de acreditar ? É genético ? É social ?

A mim porém nunca me convenceu a explicação que nunca foi explicada. Não é só pelo facto de nunca ter sido explicada, demonstrada, e isso dava pano para mangas, mas pelo facto de essa explicação, por muito gloriosa que possa ser, não responder às duas perguntas fundamentais: como, porquê?

Como é que há Deus, porque é que há Deus ?

Como é que existimos, porque é que existimos ?

A simples possibilidade que nós, seres humanos temos de fazer estas perguntas, é simultaneamente fabulosa, maravilhosa e um autêntico orgasmo da existência, mas ao mesmo tempo é aterradora. O facto de, ao contrário das crianças muito novas, termos plena consciência do aqui e do agora e não sabermos responder às questões que entretanto tivemos o brilhantismo de conseguir colocar. É talvez pelo terror que isso provoca que há pessoas que decidem, deixam-se, submeter-se a um Deus desconhecido, que julgam, através de múltiplas histórias que enformam uma civilização, conhecer. Sempre é melhor ter uma explicação que nos sirva de abóbada do que o vazio.

Há mesmo quem decida que Deus não é terceiro, mas que somos todos, tudo o que existe e conhecemos e o que existe e ainda não conhecemos. Mas, ainda assim, as duas perguntas acima colocadas ficam por responder e nenhuma das questões acerca do funcionamento do "matrix" fica esclarecida.

Eu prefiro o vazio. Pode parecer estranho. Mas também é verdade que o vazio já foi mais vazio, e há-de ser cada vez menos vazio. Se um dia iremos conseguir responder às duas perguntas que coloquei acima ? Acho que não. Tenho quase a certeza que não, que nunca vamos descobrir. Nesse dia tudo acabaria. Teríamos chegado, por assim dizer, ao fim do jogo, do puzzle. E no meu modesto entender, este puzzle é infinito.

E com o que temos sempre nos governámos, venha Deus daqui ou dali, apareça e desapareça esta ou aquela religião, esta ou aquela crença, nós existimos ao longo dessa história. Porque nos temos uns aos outros. E eu acredito nas mulheres e nos homens. Mesmo quando não acredito no que eles dizem, é o que temos. É nossa tarefa fazermos com o que temos o melhor que pudermos. Se quisermos ser felizes, claro. É cá uma intuição que eu tenho :D

7 comentários:

Guida Palhota disse...

Texto excelente, maninho.
Amanhã venho comentar. Agora já não aguento.

beijo

Aníbal Meireles disse...

:D

Se puderes amanhã relê porque eu andei a corrigir gralhas enquanto estavas a ler o texto e um excerto de frase que me fugiu às tantas e que entretanto voltei a colocar no sítio, portanto não sei se leste tudo como deve ser, ainda que as mudanças sejam mínimas.

beijo

Rute disse...

Aníbal

Gostei muito de ler este teu texto, que é uma excelente reflexão filosófica.

Penso que todos nós, de uma maneira ou de outra, com maior ou menor frequência, nos colocamos estas questões àcerca de Deus, da sua existência ou não, da sua intervenção directa ou não na vida das pessoas, no curso dos acontecimentos e, muitas outras questões.

Pessoalmente tenho muitas dúvidas, muitas inquietações e pela lógica nunca consegui chegar a lado nenhum, nestas questões de Deus. Acho que só se chega "lá" pela fé e, tal como tu , acredito que nada será provado nunca.

No entanto tenho coisas em que não acredito, de maneira nenhuma, como por exemplo no Inferno, Purgatório na "mão" de Deus na vida de cada um, no destino traçado por Ele. A ser assim, teriamos um Pai extremamente injusto e cheio de preferências por alguns dos seus filhos. A ser assim, seria um Deus cruel, desumano e sádico.

Não sei se concordo contigo quando disses que as pessoas precisam de acreditar em Deus, como se essa necessidade fosse universal! Penso que não, há pessoas que não acreditam, não querem, nem precisam de acreditar.
No entanto acredito que o Ser Humano tem uma dimensão religiosa, intrínseca e por isso se fala em religião desde sempre, desde que o Homem é Homem.

As divindades variam, alteram-se, mudam de nome consoante as épocas e as culturas. Mas isso é irrelevante, o Deus é sempre o mesmo, independentemente do nome que lhe dão.

Não acredito que o Mundo e o Ser Humano tenham surgido por acaso. Acredito em "Algo" superior que foi responsável pelo seu surgimento. Não sei como se chama, se é omnipresente e omnipotente. Não sei nada, só sinto,e é só às vezes, que Ele existe.

Podes interrogar-te como é que eu sinto uma coisa que desconheço e nunca vi. Não sei responder-te, apenas posso dizer-te que SINTO. Em que é que sinto? Normalmente é quando menos espero, mas tem quase sempre a ver com a força das pessoas, quando supostamente já deveriam ter sucumbido, na alegria no meio de grandes dificuldades, nos "Anjos da Guarda" que nos vão aparecendo durante a vida ;).

Acredito, sem poder provar nada,como é óbvio, que existe por aí um Deus Desconhecido, que nos ajuda a todos, sem excepção e, cujos desígnios, ninguém conhece.

Nada se pode provar, é tudo uma questão de feeling, ou de fé. Chama-lhe o que quiseres!

1 beijinho

Guida Palhota disse...

Meireles:
Partindo do princípio que vens lá do meu texto (cujo título tem "certas" semelhanças com o título do teu...), começo por considerar que o Felipe Massa agradeceu a um Deus conhecido (que ele conhece, pelo menos), a um Deus que é único e que ele aprendeu a, de algum modo, venerar.

E, continuando com base nesse princípio, devo dizer-te que concordo com tudo o que tu explanaste.

Quando escolhi o meu título, lembrei-me do título do Steinbeck e também vagamente do livro que li há muitos anos, mas tenho uma ideia definida para o que é para mim o deus desconhecido (que eu tanto gostaria de conhecer!) e tu até és capaz de te ter cruzado com um comentário que deixei numa foto do Yanneck em que uma escada rolante que descia para um fundo de luz me sugeria a minha desejada descida ao meu inconsciente, a parte de mim que eu nunca conhecerei e que, só conhecendo, poderia contribuir para que, eventualmente, eu me transformasse numa deusa!...

Guida Palhota disse...

De qualquer modo, Meireles, ao contrário da Rute, penso que cada um de nós tem um destino marcado, pela Natureza, que é soberana, e se cada um ou cada civilização dá um nome diferente a essa entidade... que sei eu? Muito pouco. Talvez apenas que é aconchegante sentir que não terá sido por acaso que alguém nos ajudou ou que aquele carro não nos atropelou. Foi Deus? Não. Para mim, não. Mas ainda bem estamos bem. E dá vontade de agradecer a alguém. E essa vontade de agradecimento é um sentimento de proximidade e de amor aos outros.
Quando escrevi o meu texto, estava necessitada desse gesto de agradecimento, mas não tinha a quem o dirigir em particular , nem uma lista de nomeados. Por isso, referi o meu receptor como um deus desconhecido. Por isso e porque parte de mim que eu procurarei sempre também ali está incluída, uma parte que vou encontrando, mas sem saber identificar no tempo exacto...

Guida Palhota disse...

Voltei.
Tu não te sentes incompleto?
Eu acho que as pessoas têm necessidade de acreditar porque se sentem incompletas, emboram não o sejam de facto. O problema de cada um de nós é a falta de acesso ao inconsciente e uns procuram-no duma maneira, outros doutra... ou doutras. Sempre fora, enquanto não aprendermos a enfiar-nos dentro de nós, onde, no fundo, penso que temos o entendimento do mundo em que vivemos...
Existir é uma real trabalheira e é muito mais fácil atribuir tudo ao Deus conhecido do que procurar respostas... Sempre foi assim, por mais polémica que seja esta ideia!

Aníbal Meireles disse...

Ena, tanto comentário!

Vou esperar até amanhã, pode ser que mais alguém queira acrescentar algo. Depois comento e respondo.

Beijos!